24 de ago. de 2011

As casas se tornaram éclogas

Estava no quintal observando a vida e a sua variada existência. Observava também as coisas inanimadas corroídas pelo tempo que tudo envelhece, que a todos conduz a morte.


As nuvens se tornaram plúmbeas, tirando-me de Sofia. Entrei em casa, olhei de soslaio para mamãe que consertava uma toalha de redendê; dirigindo-se à sala de visitas.

O céu estremeceu espalhando o medo nas ruas, as pessoas se recolheram para as suas casas, Mimi correu para debaixo da cama, mamãe foi às pressas tirar as roupas do varal, faltou energia e eu fiquei vendo o mundo da janela.

Depois de alguns minutos a energia voltou somente em uma das fases. Na quadra em que morava só um poste estava acesso parecendo palco de teatro em meia-luz. Envolto dela, as gotas, os besouros rodopiavam.

Estiou.

Fui à porta, pus a mão na maçaneta e um vento frio possuiu a minha pele. Pouco a pouco as coisas normalizaram: os narizes apontaram nas soleiras, os assentos nas praças tinham novidades de uma árvore que fora partida por um relâmpago, que há muito não se via um toró assim, que algumas ruas ficaram alagadas...

Da porta disse:

— Mãe, vou ali!

— Ali aonde, meu filho? Mal acabou de chover e você vai sair?

— Vou Ali!

E saí sem hora certa para voltar.
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10 de ago. de 2011

Face dupla

Olhai a cara das palavras
e verás
que as suas letras
pulam, mudam de lugar

Penetre no mundo delas
dos sonhos
e verás a variedade das cores.

Mas cuidado porque existem palavras que encolhem
e outras esvaziam o coração
e outras são pedrinhas de areia na língua.

Existe, também, em cada palavra massa.
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6 de ago. de 2011

Deseducação política

Recebi um e-mail de uma amiga. O título que o encabeça é este: A carta, publicada em O Globo. O texto é válido, mas expõe um grito de revolta e de um desespero inútil.


O texto aborda o novo referendo pelo desarmamento, acompanhado da opinião do autor pelo não. Para justificá-la, ele opina que os Governos revoguem as leis atuais; seguidas de sugestões como estas: voto facultativo, dois senadores por Estado, redução pela metade dos deputados federais, estaduais e vereadores; férias de apenas 30 dias para todos os políticos, juízes etc.

Tudo o que estar escrito nesse texto é possível se houvesse uma reeducação política e os eleitores votassem em propostas. É mais fácil criticar os atos dos profissionais da política que enfrentá-los na prática. E a prática é cruel, mesquinha, vil, hipócrita.

Esses textos que só veem a política de cima para baixo deseduca. Ninguém pode criticar, analisar o comportamento do político brasileiro sem antes compreender a forma como ele se elege. Neste país voto é mercadoria. Sendo uma mercadoria sempre iremos ter irresponsáveis no poder, gente desinteressada em legislar. Textos como os que eu recebi e recebo não serve para mim, não vai servir para ninguém.

Esses cronistas deveriam deixar de escrever textos que não servem para nada. Deveriam escrever textos de estímulos a sociedade para que esta se organizasse, compreendesse com profundidade a política para que o comércio eleitoral fosse combatido, derrotado.

Esses textos me cansam. Se eles não servissem para as minhas análises, os apagaria; pois, neles não há nenhuma novidade.

Por isso defendo a ideia de uma sociedade organizada em núcleos de reeducação política para resgatar as pessoas das palafitas, das favelas, do seu estado de miséria e torná-las cidadãs capazes de mudar a sua história pessoal e da comunidade em que vivem; porque a acidez das palavras não constrói e constrói uma sociedade mais alheia as práticas políticas.
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7 de jul. de 2011

O sorriso de Nizinho

O pré-púbere o acompanhava. Ao perceber, adiantou o par de tênis e a ansiedade acelerou no peito. Olhava de um lado e de outro, tendo a impressão que aquela criança se aproximava. A criança insistia em persegui-lo, dizendo:

— Por que o senhor tá em silêncio e tão apressado? Eu preciso falar com o senhor. De hoje que chamo você. Ah! O senhor não quer falar com eu, né ? Então, pare agora; se não eu atiro!

O homem parou ofegante, as pernas tremiam, o suor e a palidez apoderou-se de sua face. Volveu-se para a criança e foi recebido com um riso. Sem pestanejar, disse-lhe:

— Quando o senhor saiu da padaria deixou cair isso. Aí eu vim as pressas para devolver ao senhor.
O homem ficou pasmo, permanecendo em silêncio.
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5 de jul. de 2011

Largue o meu pé

Érico não costumava ouvir a mãe. Preferia a língua dos assentos das praças. Só que aquele jeito levado dele irritava a sua mãe que todos os dias chamava-o para ir à escola. Era assim:

— Ô Érico, meu filho, não vai hoje prá escola não? Só que tá nais bancada. Vá tomá banho, vá. Já tá na hora de ir prá escola, menino!

Ele deixou os colegas no assento, entrou irritado, volveu-se ela e disse::

— Como é que a senhora fala desse jeito comigo, na frente de meus amigos. Ficaram tudo mangando de mim.Tá bom deu não ir prá escola nenhuma.

Ela o olhou cuidadosamente e disse:

— Se você não tem o que querer. Enquanto você viver debaixo da minha vista, terá que me obedecer. Se não, arrume as suas coisas e vá embora. Você já tá bem crescidinho. A vida é quem ensina.

E deu-lhe as costas, indo à cozinha.Ele nada disse. Pegou a bolsa e foi à escola, não por vontade livre, mas pela imposição da mãe.

As ruas, naquele dia, estavam pálidas e tudo o que nelas haviam. Somente a revolta, o tédio, as frustrações o acompanhava. Para ele a escola nada significava. No trajeto se encontrou com Mota, seu vizinho, que também não era muito de estudar. Aproximou-se do amigo, pôs o braço em seu ombro e com um riso libidinoso, iniciou este diálogo:

— Érico, nóis vai hoje [1]gaziar. Vamo procurá as meninas e namorá com elas. Vamo?

— É Mota, vamo mermo! Depois a gente toma uma. Já tôu mesmo com raiva.

— Vamo lá. Fernanda tá com uma blusinha! Só você vendo.

E se foram corando as ruas e esbanjando a libido.

[1] Matar aula.
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3 de jul. de 2011

Os prefeitos, a folha paralela e os cognatas

Nas cidadezinhas, os prefeitos quando estão em apuro financeiro (nunca deixam de estar) costumam dizer que “não tem dinheiro”, que “os repasses diminuíram” e vão empurrando a administração com a barriga, digo: com a língua e remendos.
E assim vivem eles: um tapinha nas costas num dia, óculos escuro noutro, notas frias ali, vereadores passando no bolso por aqui. Mas as cidadezinhas continuam as mesmas: prestando serviços públicos devagar, faltando-lhes as bananeiras e os burros de Drummond.

Essa falta de dinheiro que a maioria dos prefeitos dizem que “não tem” é justificada por vários motivos. Um deles é tão comum, tão familiarizado que todos praticam-no: é a folha paralela.

A folha paralela é uma folha política, a parte; ajeitada por causa dos compromissos eleitorais. Para mantê-la, eles negam reajustes salariais a servidores e prestam serviços públicos sem qualidade. Assim estar distribuída: para os cabos eleitorais, polícia, parentes, amigos, financiadores de campanha (agiotas, comerciantes etc), o bolsa semanal, os contratados, servidores públicos apadrinhados e há situações em que membros do Judiciário fazem parte dela. A folha paralela é um problema político longe de ser resolvido, graças a mercantilização do voto.

Além dessas coisas aborrecentes, há os infelizes cognatas. O cognata é o papagaio do político. Ele repete aquilo que ouve dos prefeitos, deles adquirem alguns hábitos, acham graça em tudo o que dizem e sempre procuram, de uma forma ou outra, justificar as falhas administrativas e pessoais deles. Estão em todas as partes, em todas as classes e deles não se exige escolaridade. É apenas um animalzinho, nada mais.
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18 de jun. de 2011

A serva


Quando percorreu as linhas horizontais do bilhete, notou a deficiência da grafia, da ortografia, do ensino fundamental. Eram dizeres rústicos, pueris, seguidos de entusiasmo e contentamento. Tratava-se de mais uma na infinita lista da libido.

Nele estava pedidos de desculpas, lamentações de um encontro realizado amargo; simplicidade amarela. A esperança não adornou mais o eu, murchou, caiu. Sentimento de culpa, pedido de entendimento. As palavras não explicavam o código. Uma saudação carinhosa.

Ela dizia: “ (...) eu gostaria...o que eu...eu jamais vou esquecer...quando eu chegar (...)”. Estas eram as palavras de quem desconhecia seus próprios sentimentos, utilizando de vocábulos espontâneos; emergido do íntimo.

Apesar de as palavras serem escritas com tinta azul, eram tortas, tontas, avermelhadas que expunha o ser vestido de carne no papel, vindo com ímpeto de dentro para dentro... Uma pintura na íris.

— Você está partida em pedaços. Tenho nas mãos os sentimentos e a linha para coser a roupa das lágrimas. Um hálito suave ameniza a perda. As cicatrizes trarão aos olhos as lembranças.

Mas o insistia: “(...) te adoro...muito bom...encontra com você... o que cinto... não...escrever...gosto de você...demais...tchau...beijo....abraço....ass...” esqueceste do “S” e fizeste cinto, que te aperta de uma só vez, várias... o teu nome é um sigilo cardíaco nas asas do pássaro e na liberdade do vento.

Guardarei com afeto natural o teu estado de emoção. Olharei as linhas verde das folhas e verei escrito nada a teu respeito. Este é o meu sigilo verde, mudo.
Outubro de 1997.
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