29 de ago. de 2018

Jurupari ou Tupã?


Jurupari, o senhor do culto mais vasto, comum a todas as tribos, filho e embaixador do Sol, nascido de mulher sem contato masculino, reformador, de rito exigente e de precauções misteriosas, foi depressa identificado como sendo o Diabo. Cinquenta anos de catequese espalharam para Jurupari o renome satânico.  Além das crianças ensinadas das escolas, os catecúmenos, os índios de serviço, a população europeia, acordes em ver no velho deus indiano uma grandeza infernal, a multidão dos mestiços, mamelucos, curibocas, massa plástica, sugestionável e de imaginação ampla, divulgou o novo papel de Jurupari. No século XVII já o Filho do Sol, o Dona dos Instrumentos, o Senhor dos Segredos, evocado ao som dos maracás simbólicos, era, da cabeça aos pés e definitivamente, o Diabo, o Cão, o Belzebu, o Satanás, o Demônio.

Achado o inimigo, faltava o aliado. Ao mesmo tempo que o combate se dava aos seguidores de Jurupari surgia um trabalho intenso e admirável para assimilação de um deus ameraba nas condições de corresponder a noção católica do Deus-Pai, o Iavé dos hebreus. Era preciso encontrar na teogonia ameríndia um ser incolor, sem cultos e ritos que o tivessem comprometido às exigências teológicas, sem fazer mal nem bem, infixável, informe, nebuloso, ignorado em sua doutrina, um legítimo “Deus Desconhecido” dos gregos na decadência, esperando, nas alturas do infinito, a voz de São Paulo para defini-lo e dizer-se embaixador de seu nome.

Os jesuítas da catequese, todos os elementos religiosos do Brasil colonial, localizaram esse Ser providencial para que o indígena o amasse e não fosse obrigado a adorar um deus alienígena, em Tupi. Para o índio, Tupã começou a ter culto prestigiado pela força dos brancos enquanto Jurupari era perseguido por todos os meios e maneiras. O Pajé recuava batido e com ele a crença se dissolvia no âmago das matas para conservar-se, até hoje, atestando sua espantosa vitalidade espiritual. Tupã fez parte de todas as orações e aulas. O padre Manuel da Nobrega, Anchieta, Aspilcueta Navarro, Abbville, Thevet, d’Evreux compõem versos, catecismo, peças dramáticas, hinos, em louvor exclusivo de Tupã, Deus verdadeiro, aparecido para contrapor-se ao falso Jurupari dos infernos e salvar as almas para a eternidade paradisíaca.

Como compreendia o indígena a Tupã, e como este se tornou Deus-Pai dos cristãos? A impressão que me ficou de todas as leituras feitas nos documentos dos séculos XVI e XVII, lendas e tradições indígenas, vocabulários e relatórios, é que Tupã é unicamente um trabalho de adaptação da catequese. O Deus cristão tomou a forma ou melhor, deu a forma a uma entidade que nunca possuíra significação religiosa para nenhuma tribo do Brasil.

(...)

O grande deus popular, deus intermediário, para os índios do Brasil era Jurupari que foi crismado em Diabo, o Princípio do Mal. Tupã é uma criação erudita, europeia, branca, artificial. Seu culto foi dirigido pelos padres da catequese. É o Princípio do Bem. Nada mais lógico que essa tática dos jesuítas, por todos os títulos admiráveis, em frente ao absorvedor prestígio de Jurupari.
Tupã, deus que fala pelos trovões e vê pelo caracol dos relâmpagos e raios, é tão literário como o Júpiter-tonante, acastelador de nuvens e marido de Juno.

(...)

Era Tupã o que os folcloristas ingleses chamam Nature God, personificação abstrata de forças cósmicas, com atuação meteórica, sem interferência na vida sublunar. Pertencia à fase inicial das religiões. Era um elemento que Durkheim dizia préanimiste. Lévi-Bruhl escreve que, nas sociedades primitivas, todas as funções de relação são funções de presença de seres sobrenaturais. E como toda participação tende a ser representada nos fenômenos meteorológicos, que deviam impressionar maiormente aos indígenas, era natural que certos seres fossem apontados como dirigindo o trovão, o raio, o relâmpago e a chuva (...).

CASCUDO, Luís da Câmara. Geografia dos Mitos Brasileiros. 2ª ed. São Paulo: Global, 2002. pp. 58-60.

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2 de ago. de 2018

Como escreve Ron Perlim


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Ron Perlim é escritor, especializado em Educação Matemática, colaborador da Revista Obvious.

 
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Eu me acordo às seis. Tomo suco de um limão com água morna. Depois, vou ler. Feita a leitura, tomo café e em seguida vou trabalhar.

Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Não precisarei qual é a melhor hora para mim. A escrita em mim pode vir a qualquer hora. É espontânea. Se necessário, paro o que estou fazendo para anotar o que me vem à cabeça.

Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Quando jovem na escrita, eu escrevia todos os dias. Isso acumulou muita matéria bruta. Então, eu tenho muita matéria bruta para ser trabalhada. Quase todos os dias eu reviso esse material, mas isso não me impede de escrever novos textos. Atualmente reviso um novo livro para a Penalux.

Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
A escrita em mim surge primeiro com um tema ou uma ideia. Isso acontece por meio de percepções num diálogo, numa leitura, numa observação das coisas e outros recursos. Exemplo disso é o livro A menina das queimadas, nascido de alguns diálogos com a minha sogra. Já o livro O povo das águas simplesmente me veio e eu o tomei para mim. Há textos que ficam prontos, exigindo apenas pesquisas pontuais. Há outros que necessitam de uma pesquisa mais aprofundada. Eu nunca pesquiso primeiro para depois escrever. Eu escrevo primeiro. Depois, pesquiso.

Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
A procrastinação é um processo natural na escrita. O que não pode é o prolongamento excessivo dela. Com projetos longos ou curtos, sempre bate a ansiedade. Ela é mais intensa quando começamos na estrada literária. Com o tempo, isso se incorpora de forma natural em nosso cotidiano. Para concluir meus projetos, me mantenho sereno e objetivo.

Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Não sei dizer a quantidade, mas são muitas. Para mim, revisar é editar o texto e isso dá um trabalho danado. Quando eu parto para essa parte, me lembro de Graciliano e o conselho que ele deixou quando compara o ato da escrita com ofício das lavadeiras em Alagoas. Quem primeiro lê meus textos é a minha esposa ou alguém da revisão gramatical.

Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Como disse, a minha cabeça não tem hora para a escrita. Se surgir uma ideia para um livro, eu anoto onde estiver e me utilizo dos recursos viáveis, desde um pedaço de papel, papelão, passando por guardanapos, celulares, tabletes, notebooks etc. Eu não permito que a ideia vá embora. Outro dia eu estava no carro. Aí, me veio a ideia de escrever uma crônica. Sem papel por perto, o que fiz? Peguei a caneta e rabisquei a ideia principal no para-sol.

De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
As minhas ideias são releituras das leituras do mundo e dos livros. O único hábito que tenho, se isso pode ser chamado de hábito, é estar atento ao ir e vir das coisas, das pessoas, dos animais e através disso percebê-las.

O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos?
Eu iniciei a minha escrita em cadernos escolares. Quando eu observo o que escrevia com o que escrevo atualmente, vejo um abismo muito grande e o amadurecimento da minha escrita, fruto de muita prática.

O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Diria o seguinte: não se envergonhe de seus textos primeiros, como fazem muitos escritores, afinal de contas, era uma criança que engatinhava com as palavras e brincava com elas. Saiba que escrever não é um dom.

Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou?
Montar uma biblioteca na cidade onde nasci e através dela promover a importância da leitura e dos livros para a vida das pessoas, especificamente das crianças. Nosso país é carente de boas bibliotecas, principalmente nas cidadezinhas.

Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Um livro que fale do homem e a sua condição como espécie doente e atrasada.

Fonte: https://comoeuescrevo.com/ron-perlim/. Acesso em 02 de agosto de 2018.
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26 de jul. de 2018

Projeto O povo das águas

A professora Rose Nunes trabalha na Escola Joaquim Gonçalves de Sá, numa comunidade quilombola no povoado Caraíbas, em Canhoba, Sergipe. Durante dois meses, o livro O povo das águas foi incluído no projeto de leitura daquela instituição. A cada semana era lido um capítulo do livro. Após a leitura, havia a produção de textos ou algo concreto. Os alunos ficaram encantados e desse encantamento surgiu o projeto O povo das águas e a vontade de conhecerem a Pedra do Meio, como já foi publicado neste blogue. Os detalhes desse projeto podem ser ouvido neste vídeo da professora Rose e algumas fotos.







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15 de jul. de 2018

As acácias me traíram

Acácia Rosa
Tem dias que a gente precisa de ar fresco e um lugar bacana para ir. Foi num desses que eu larguei tudo e fui à Praça Assis, por ser ampla e ter muitas acácias. Eu adoro as acácias!
O perfume delas me trouxe alguém das profundezas. Alguém que eu achava que havia esquecido. Aída pululava os meus pensamentos e eu não queria viver aquele drama que se arrastou em mim por algum tempo. Seria eu uma cobaia nas mãos de Cupido? Não sei dizer. Sei que o perfume das acácias me traiu, trazendo-me lembranças que não queria.
Ali, na praça, atordoado, não me livrei de mim. Me debatia, buscava freneticamente algo que me socorresse daquelas lembranças que causavam calafrios.  Eu não queria reviver tudo de novo.
Tudo isso foi um engodo da alma porque o olfato me fez pensar o tempo todo em Aída contra a minha vontade. Alojou-se, tomou posse. Nem mesmo as garotas com quem saí, delicadas e suaves, foram suficientes para impedir a fúria com que as lembranças me viam.
Cansado das acácias, fui andando, fui estranho. Era preciso se recompor, era preciso se reorganizar.
Mais adiante, longe delas, eu me recolhi de tal forma que o tempo foi indo, sem que eu percebesse. Quando me dei conta, pés e mãos viam de todas as partes.
Naquele momento, ninguém apareceu para quebrar a minha dor. Até porque na dor já não há mais alento. Naquele dia eu deixei as acácias e não tinha mais certeza se as queria por perto.

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26 de jun. de 2018

A maior tragédia do homem moderno

Paulo Freire


Uma das grandes, se não a maior, tragédia do homem moderno, está em que é hoje dominado pela força dos mitos e comandado pela publicidade organizada, ideológica ou não, e por isso vem renunciando cada vez, sem o saber, à sua capacidade de decidir. Vem sendo expulso da órbita das decisões. As tarefas de seu tempo não são captadas pelo homem simples, mas a ele apresentadas por uma “elite” que as interpreta e lhas entrega em forma de receita, de prescrição a ser seguida. E, quando julga que se salva seguindo as prescrições, afoga-se no anonimato nivelador da massificação, sem esperança e sem fé, domesticado e acomodado: já não é sujeito. Rebaixa-se a puro objeto.



FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade, pág. 51. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 2000.

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17 de jun. de 2018

Alunos conhecem a Pedra do Meio

Pedra do Meio no fundo

Os alunos da Escola Municipal  Joaquim  Gonçalves de  Sá, localizada no povoado Caraíbas na cidade de Canhoba, Sergipe, leram o livro O povo das águas. Encantados com a história, eles queriam conhecer a Pedra do Meio, onde era presidido o Conselho do povo do rio. Para isso, eles foram à cidade de Porto Real do Colégio acompanhado da professora Rose Nunes e da diretora escolar Anacler e lá, estiveram com o escritor Ron Perlim que os conduziu pela Pça. Rosita de Góes Monteiro até chegarem no Porto da Delegacia para avistarem a Pedra. Desceram até às margens do rio e contemplaram o estado melancólico em que se encontra o nosso amado Chico. O momento foi oportuno para falar mais sobre as personagens do livro e mostrar-lhes a importância da preservação do meio ambiente. 

Um dos alunos disse: "Queria ver o Nego d'Água e a Alma Penada". O escritor Ron Perlim respondeu: "Se você tivesse trazido o livro, você e seus coleguinhas viriam o Nego d´Água e os demais seres".
A visita não foi mais intensa  porque não havia pescadores disponíveis para conduzir os alunos, a professora e o escritor até a Pedra do Meio.

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28 de mai. de 2018

As bacantes

Dionísio ou Baco

Na região da Mesopotâmia, tivemos as Sáceas, festas inspiradas nas licenciosidades sexuais e na inversão de papéis entre servos e senhores. Na Grécia, foi oficializado, no século VII a.C., o culto a Dionísio. Deus da transformação e da metamorfose, Dionísio era comemorado no início da primavera, quando sua imagem chegava a Atenas transportada por embarcações com rodas, com mulheres e homens nus em seu interior. Em terra, a procissão era acompanhada por um cortejo de ninfas e saudada em êxtase pela multidão de mascarados. A festa acabava no templo sagrado de Lenaion, onde se consumava a união de Dionísio com os fiéis, gerando abundância e fertilidade. Em 379 a. C., foram as bacanais romanas que marcaram época, data em que o culto a Dionísio chegava a Roma com o nome de Baco. As bacantes, aos gritos de [1]Evoi! Evoi!, por ocasião das orgias em homenagem a Evan, alcunha de Baco, cometeram tantos excessos que as Bacanais foram proibidas em 186 a. C. pelo Senado Romano. Como a proibição não vingou por muito tempo, as Bacanais voltaram com mais vigor ainda no tempo do império.


SILVA, René Marc da Costa et. all. Cultura Popular e Educação. Salto para o Futuro. TV Escola. SEED. MEC, Brasília, 2008. p. 96


[1] Evoi! Evoi! – origem do grito carnavalesco Evoé!
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