Jurupari, o
senhor do culto mais vasto, comum a todas as tribos, filho e embaixador do Sol,
nascido de mulher sem contato masculino, reformador, de rito exigente e de
precauções misteriosas, foi depressa identificado como sendo o Diabo. Cinquenta
anos de catequese espalharam para Jurupari o renome satânico. Além das crianças ensinadas das escolas, os
catecúmenos, os índios de serviço, a população europeia, acordes em ver no
velho deus indiano uma grandeza infernal, a multidão dos mestiços, mamelucos,
curibocas, massa plástica, sugestionável e de imaginação ampla, divulgou o novo
papel de Jurupari. No século XVII já o Filho do Sol, o Dona dos Instrumentos, o
Senhor dos Segredos, evocado ao som dos maracás simbólicos, era, da cabeça aos
pés e definitivamente, o Diabo, o Cão, o Belzebu, o Satanás, o Demônio.
Achado o
inimigo, faltava o aliado. Ao mesmo tempo que o combate se dava aos seguidores
de Jurupari surgia um trabalho intenso e admirável para assimilação de um deus
ameraba nas condições de corresponder a noção católica do Deus-Pai, o Iavé dos
hebreus. Era preciso encontrar na teogonia ameríndia um ser incolor, sem cultos
e ritos que o tivessem comprometido às exigências teológicas, sem fazer mal nem
bem, infixável, informe, nebuloso, ignorado em sua doutrina, um legítimo “Deus
Desconhecido” dos gregos na decadência, esperando, nas alturas do infinito, a
voz de São Paulo para defini-lo e dizer-se embaixador de seu nome.
Os jesuítas
da catequese, todos os elementos religiosos do Brasil colonial, localizaram
esse Ser providencial para que o indígena o amasse e não fosse obrigado a
adorar um deus alienígena, em Tupi. Para o índio, Tupã começou a ter culto
prestigiado pela força dos brancos enquanto Jurupari era perseguido por todos
os meios e maneiras. O Pajé recuava batido e com ele a crença se dissolvia no
âmago das matas para conservar-se, até hoje, atestando sua espantosa vitalidade
espiritual. Tupã fez parte de todas as orações e aulas. O padre Manuel da
Nobrega, Anchieta, Aspilcueta Navarro, Abbville, Thevet, d’Evreux compõem
versos, catecismo, peças dramáticas, hinos, em louvor exclusivo de Tupã, Deus
verdadeiro, aparecido para contrapor-se ao falso Jurupari dos infernos e salvar
as almas para a eternidade paradisíaca.
Como
compreendia o indígena a Tupã, e como este se tornou Deus-Pai dos cristãos? A
impressão que me ficou de todas as leituras feitas nos documentos dos séculos
XVI e XVII, lendas e tradições indígenas, vocabulários e relatórios, é que Tupã
é unicamente um trabalho de adaptação da catequese. O Deus cristão tomou a
forma ou melhor, deu a forma a uma entidade que nunca possuíra significação
religiosa para nenhuma tribo do Brasil.
(...)
O grande
deus popular, deus intermediário, para os índios do Brasil era Jurupari que foi
crismado em Diabo, o Princípio do Mal. Tupã é uma criação erudita, europeia,
branca, artificial. Seu culto foi dirigido pelos padres da catequese. É o
Princípio do Bem. Nada mais lógico que essa tática dos jesuítas, por todos os
títulos admiráveis, em frente ao absorvedor prestígio de Jurupari.
Tupã, deus
que fala pelos trovões e vê pelo caracol dos relâmpagos e raios, é tão
literário como o Júpiter-tonante, acastelador de nuvens e marido de Juno.
(...)
Era Tupã o
que os folcloristas ingleses chamam Nature
God, personificação abstrata de forças cósmicas, com atuação meteórica, sem
interferência na vida sublunar. Pertencia à fase inicial das religiões. Era um
elemento que Durkheim dizia préanimiste.
Lévi-Bruhl escreve que, nas sociedades primitivas, todas as funções de relação
são funções de presença de seres sobrenaturais. E como toda participação tende
a ser representada nos fenômenos meteorológicos, que deviam impressionar
maiormente aos indígenas, era natural que certos seres fossem apontados como
dirigindo o trovão, o raio, o relâmpago e a chuva (...).
CASCUDO,
Luís da Câmara. Geografia dos Mitos
Brasileiros. 2ª ed. São Paulo: Global, 2002. pp. 58-60.