Antônio FJ Saracura
Era
dia de pescaria na lagoa Saracura, da Terra Vermelha. As águas,
finalmente, abaixaram, depois de três invernos fortes, chegando ao
nível certo para uma pescaria de mão. A Saracura tinha suas águas
cobertas de junco e por uma floresta de pés de cortiça. Qualquer
pescaria dava muito trabalho, pois demandava a limpeza de trechos,
sob pena de ninguém encontrar peixe nenhum, escondido nas raízes,
troncos e ramagens, na água lamacenta. Mas numa situação como
essa, de longa espera, com a perspectiva de muito peixe, sempre havia
gente disposta a fazer a limpeza. Se bem que, nas pescarias, apenas a
família tinha acesso à lagoa. Se fosse aberta, apareceria até
gente das Candeias, da Onça e do Gado Bravo, povoados que nem eram
mais de Itabaiana.
Os
filhos do diabo ruivo, tio Ulisses, e de tia Iaiazinha, que morrera
de parto há bem pouco tempo, ficaram a manhã inteira dentro da
água, arrancando trechos de junco, matas de cortiça, preparando as
cacimbas para a pescaria. E, enquanto limpavam, iam já pescando
também.
A
lagoa Saracura, quando estava cheia, ocupava áreas em três
propriedades: em nosso sítio (chamado sítio Saracura), no sítio de
Fausto de Seulia e no sítio de tio Ulisses, que depois foi vendido
ao caraibeiro Manezinho de Rita, e hoje nem sei a quem pertence.
Quando as águas abaixavam, a lagoa encolhia e se restringia apenas
ao sítio Saracura, por ser uma depressão geográfica acentuada. As
grandes traíras, os brilhantes jundiás e os encouraçados caborjes,
todos estavam, agora, no nosso lado da lagoa. Os outros lados já
haviam secado há dias. A colheita estava sendo no sítio Saracura,
mas os peixes haviam sido criados também nos demais... nunca soube
que os vizinhos tivessem exigido suas partes. Até esnobavam dizendo
que nem gostavam de peixe.
Manoel,
filho de Fausto de Seulia, era um caboclinho miúdo, feio que dava
dó. Burlou a vigilância do pai, inimigo de papai a vida toda, e
veio para o nosso lado. Era muito estranho ele estar ali naquele
momento! Para ter benzido as cercas (eram duas cercas paralelas e
juntas, uma feita por Fausto e outra por papai, em pirraça mútua),
deveria ter um motivo forte, como a grande pescaria. E só se
dispusera a vir porque talvez achasse, lá no seu íntimo, que os
peixes da lagoa pertenciam também a seu pai, o que era verdade, pelo
que eu disse acima.
E
ele, Manoel, dentro da sua insignificância, assistia incógnito à
azáfama dos pescadores — meus primos brancos — trazendo peixes
pelas guelras e colocando-os em sacos e latas vazias de querosene
Jacaré na beirada da lagoa. E depois, correndo de novo para água e
retornando com mais e mais. Peixes eram zunidos da água e caiam na
cama de junco seco, de onde alguém os recolhia e os guardava nas
latas e nos sacos.
Manoel
estava à margem, pertinho da água, observando a tudo, como
hipnotizado. Ele queria uma traíra daquelas... Não por que achasse
que tinha direito, mas porque gostaria de mostrá-la à mãe, dizendo
que a pescara. Sentia, entretanto, que a lagoa era funda demais para
ele. Poderia afogar-se. E permaneceu ali, ignorado por todos, vendo
os pescadores encherem as vasilhas de peixes.
Algumas
mulheres, meninos e pessoas de mais idade, à sombra de juremeiras,
esperavam a vez de tratarem os peixes ou que se acabasse a lida, como
se fossem a plateia da festa.
Uma
traíra, a maior traíra da lagoa, de beiço virado, lombo preto de
crocodilo, acossada talvez pelo entra e sai dos pescadores, voou para
fora da água, ficando a se debater no junco seco, aos pés de
Manoel. Surpreso, ele abriu a boca, sorriu, pisou com jeito no lombo
grosso e abaixou-se. Desejava o peixe desde que iniciou a viagem
solitária até a margem inimiga da lagoa, onde nunca estivera antes.
Segurou-a firmemente pelas guelras e a levantou com suas mãozinhas,
como se empunhando um troféu. Sentia-se premiado! Levaria para sua
mãe, que certamente faria um pirão, e todos em casa comeriam
fartamente.
Uma
sombra densa cresceu atrás dele. Era Tino, o filho mais velho de tia
Iaiazinha, que juntava os peixes que eram zunidos da água, querendo
a traíra:
—
Essa vai para a lata de Tio Zé! É a maior da lagoa. O dono do sítio
tem todo o direito!
Manoel
viu que perderia o que já tinha como seu. E começou a choramingar.
Não iria mais para casa levando o troféu. O dono do sítio e da
lagoa deveria realmente ter direitos especiais. Sentiu que não
poderia evitar que Tino, um homem feito, sobrinho do dono da lagoa,
lhe tomasse o peixe. Então chorou alto, gritando que o peixe era
seu, pois pulara aos seus pés e fora ele quem o pegara.
Tino
esticou o braço para tomar o peixe. E Manoel, mesmo o querendo muito
para si, levantou suas mãozinhas para entregá-lo.
Papai,
que estava perto e ouviu tudo, aproximou-se, demonstrando espanto:
—
Quem pegou esse peixe tão grande?
E
pousando a mão no ombrinho de Manoel, perguntou outra vez:
—
Foi você, meu filho?
Tino
tentava explicar que o peixe pulara da água, tangido talvez por
algum dos pescadores. O moleque apenas se antecipara no trabalho de
resgatá-lo.
Papai
mandou Tino se calar e olhou para o pequeno Manoel, que continuava
choramingando, ainda segurando (mas quase soltando) o grande peixe, e
disse:
—
O peixe é seu, Manoel. Eu vi tudo desde o começo. Pode levar para
casa e dizer a sua mãe que foi você quem pegou.
Manoel
olhou agradecido para papai e saiu correndo, com os passinhos miúdos,
prejudicados por ter as mãos ocupadas, fazendo o mesmo caminho da
vinda, contornando as águas da lagoa, que continuaram sendo coadas,
na maior algazarra.
XXX
Sessenta
anos depois, eu ia passando pelo mercado Thales Ferraz, em Aracaju,
como faço quase toda semana. Ia comprar um quilo de castanha na
banca de meu primo Narciso, filho de uma tia de mamãe, chamada
Lozinha, do outro ramo da família, os Ferreiros da Matapoã. E,
passando pela grade de farinha de Manoel de Fausto, hoje um homem
idoso como eu, vi-o cochilando sobre a sacaria, escornado, roncando.
Ainda bem que era uma hora morta, perto das duas da tarde, e sem
fregueses.
Nunca
tive muita ligação com os filhos de Fausto de Seulia (o inimigo de
meu pai no povoado), mas Manoel sempre me tratou bem, sempre
retribuiu minha frieza com uma incoerente alegria.
Fiquei
olhando-o um tempo, assim dormindo, e fui tentado a mexer com esse
simpático semidesconhecido. Joguei-lhe, compassadamente, de seus
próprios sacos, caroços de milho, que o atingiram no peito desnudo,
ricocheteando e escorregando para o seu colo. Daí a pouco, ele
acordou e, ao me ver ali parado, abriu um largo sorriso. Levantou-se
do leito improvisado e veio apertar minha mão, que nem lhe havia
estendido ainda. Resolvi, então, fazer-lhe a pergunta que,
secretamente, carreguei sempre comigo:
—
Manoel, por que você demonstra tanta alegria quando me encontra? Eu
mereço? Agora mesmo, em vez de um esbregue, recebo um cumprimento
afetuoso!
Ao
que ele respondeu contando a história da traíra, a que narrei
acima. E acrescentou:
—
Nunca esqueci o gesto de seu pai naquele dia, ou melhor, tenho seu
pai e os Saracuras no meu coração. Nada marcou tanto a minha vida
como aquela traíra, que é o peixe que mais gosto. No coco me dá
mais prazer do que quebrar caranguejo na Atalaia ou chupar picolé de
mangaba da Cinelândia... E continuou:
—
Sempre tive vontade de contar a um de vocês essa história, mas
nunca me deram oportunidade. Foi a primeira vez que um Saracura
jogou-me carocinhos de milho...
Xxx
Os
outros vendedores de cereais do grande mercado olhavam intrigados
aqueles dois sexagenários abraçados ao pé de uma fileira de sacos
abertos.
Sobre o autor
Nasceu no povoado
Terra Vermelha, Itabaiana, em 06.07.1945, filho dos agricultores José
Francisco de Jesus e Josefa Oliveira de Jesus. Começou os estudos
nas escolas de dona Zinha (Terra Vermelha) e de Bernardete de Dona
(Cajueiro). Concluiu o primário e fez o ginasial no Seminário e
Colégio Diocesano de Aracaju. Fez o Científico no Atheneu
Sergipense. Fez o curso superior na faculdade de Economia da UFS,
Ciências Econômicas, formado em 1971.
Tem cursos de
especialização na IBM, Abc-bull e várias entidades de ensino do
País. Tem Pós graduação na Universidade do Distrito Federal, na
Cândido Mendes, na UNIT, em Sistema de informação e Gestão de
Imóveis.
Além de agricultor
(na infância) e Analista de Sistemas (Petrobrás, Rhodia Química e
Telergipe), exerceu outras atividades em sua vida profissional, que
ainda continua efervescente: Repórter, Redator e Apresentador
(jornal “A Cruzada” e Rádio Cultura de Sergipe), Serviços
Gerais (Paes Mendonça), Auxiliar de Escritório, Programador de
Computador, Analista de suporte técnico, Gerente de Informática,
Corretor de Imóveis, Gestor de Imóveis e, atualmente, escritor e
jornalista.
Publicou o livro “Os
Tabaréus do Sítio Saracura”, em 2008, agora na quarta edição,
restabelecendo os vínculos partidos com a atividade literária e com
o sítio rústico onde nasceu.
Publicou depois:
“Meninos que não Queriam ser Padres”, (em 20111, romance, na
segunda edição), “Minha Querida Aracaju Aflita” (2011, crônicas
premiado pela Secretaria de Cultura de Sergipe), “Tambores da Terra
Vermelha” (contos,2013), “Os Ferreiros” (contos, 2015), além
de uma dezena de cordéis.
É membro da
Academia Itabaianense de Letras (vice-presidente), do Instituto
Histórico e Geográfico de Sergipe, da Associação Sergipana de
Imprensa, e da Academia Sergipana de Letras (Cadeira número 10),
É casado com Josefa
Iracilda Pinheiro de Jesus, tem três filhos e três netos.