31 de mar. de 2017
23 de mar. de 2017
O autor fala de sua obra: A menina das queimadas
Como nasceu A menina das queimadas?
O livro A menina das queimadas nasceu das memórias de dona Zélia, minha sogra,
recolhidas das muitas conversas que tive com ela. Apesar dos 80 anos, ela
contava com extrema lucidez coisas da sua infância, adolescência e juventude.
De tanto ouvir ela falar das coisas que marcaram a sua vida, resolvi recriar
parte de suas memórias literariamente para elas sejam úteis para aqueles que
abrem a cabeça e o coração. As histórias contadas no livro A menina das queimadas se passavam durante os anos 30 a 50. A época
é distinta dos dias atuais, mas as histórias servem de reflexão para aqueles
que queiram pousar nelas.
Do que falam essas histórias?
As histórias falam do sistema
precário de educação, de brincadeiras, sofrimento, do amor, desgraça, crenças,
costumes, trabalho infantil e as dificuldades, os tabus que eram impostos na
época. Elas não têm somente valor pessoal, mas sociológico e antropológico por
se tratar de um retalho do país.
Até mais!
11 de mar. de 2017
A traíra grande
Antônio FJ Saracura
Era
dia de pescaria na lagoa Saracura, da Terra Vermelha. As águas,
finalmente, abaixaram, depois de três invernos fortes, chegando ao
nível certo para uma pescaria de mão. A Saracura tinha suas águas
cobertas de junco e por uma floresta de pés de cortiça. Qualquer
pescaria dava muito trabalho, pois demandava a limpeza de trechos,
sob pena de ninguém encontrar peixe nenhum, escondido nas raízes,
troncos e ramagens, na água lamacenta. Mas numa situação como
essa, de longa espera, com a perspectiva de muito peixe, sempre havia
gente disposta a fazer a limpeza. Se bem que, nas pescarias, apenas a
família tinha acesso à lagoa. Se fosse aberta, apareceria até
gente das Candeias, da Onça e do Gado Bravo, povoados que nem eram
mais de Itabaiana.
Os
filhos do diabo ruivo, tio Ulisses, e de tia Iaiazinha, que morrera
de parto há bem pouco tempo, ficaram a manhã inteira dentro da
água, arrancando trechos de junco, matas de cortiça, preparando as
cacimbas para a pescaria. E, enquanto limpavam, iam já pescando
também.
A
lagoa Saracura, quando estava cheia, ocupava áreas em três
propriedades: em nosso sítio (chamado sítio Saracura), no sítio de
Fausto de Seulia e no sítio de tio Ulisses, que depois foi vendido
ao caraibeiro Manezinho de Rita, e hoje nem sei a quem pertence.
Quando as águas abaixavam, a lagoa encolhia e se restringia apenas
ao sítio Saracura, por ser uma depressão geográfica acentuada. As
grandes traíras, os brilhantes jundiás e os encouraçados caborjes,
todos estavam, agora, no nosso lado da lagoa. Os outros lados já
haviam secado há dias. A colheita estava sendo no sítio Saracura,
mas os peixes haviam sido criados também nos demais... nunca soube
que os vizinhos tivessem exigido suas partes. Até esnobavam dizendo
que nem gostavam de peixe.
Manoel,
filho de Fausto de Seulia, era um caboclinho miúdo, feio que dava
dó. Burlou a vigilância do pai, inimigo de papai a vida toda, e
veio para o nosso lado. Era muito estranho ele estar ali naquele
momento! Para ter benzido as cercas (eram duas cercas paralelas e
juntas, uma feita por Fausto e outra por papai, em pirraça mútua),
deveria ter um motivo forte, como a grande pescaria. E só se
dispusera a vir porque talvez achasse, lá no seu íntimo, que os
peixes da lagoa pertenciam também a seu pai, o que era verdade, pelo
que eu disse acima.
E
ele, Manoel, dentro da sua insignificância, assistia incógnito à
azáfama dos pescadores — meus primos brancos — trazendo peixes
pelas guelras e colocando-os em sacos e latas vazias de querosene
Jacaré na beirada da lagoa. E depois, correndo de novo para água e
retornando com mais e mais. Peixes eram zunidos da água e caiam na
cama de junco seco, de onde alguém os recolhia e os guardava nas
latas e nos sacos.
Manoel
estava à margem, pertinho da água, observando a tudo, como
hipnotizado. Ele queria uma traíra daquelas... Não por que achasse
que tinha direito, mas porque gostaria de mostrá-la à mãe, dizendo
que a pescara. Sentia, entretanto, que a lagoa era funda demais para
ele. Poderia afogar-se. E permaneceu ali, ignorado por todos, vendo
os pescadores encherem as vasilhas de peixes.
Algumas
mulheres, meninos e pessoas de mais idade, à sombra de juremeiras,
esperavam a vez de tratarem os peixes ou que se acabasse a lida, como
se fossem a plateia da festa.
Uma
traíra, a maior traíra da lagoa, de beiço virado, lombo preto de
crocodilo, acossada talvez pelo entra e sai dos pescadores, voou para
fora da água, ficando a se debater no junco seco, aos pés de
Manoel. Surpreso, ele abriu a boca, sorriu, pisou com jeito no lombo
grosso e abaixou-se. Desejava o peixe desde que iniciou a viagem
solitária até a margem inimiga da lagoa, onde nunca estivera antes.
Segurou-a firmemente pelas guelras e a levantou com suas mãozinhas,
como se empunhando um troféu. Sentia-se premiado! Levaria para sua
mãe, que certamente faria um pirão, e todos em casa comeriam
fartamente.
Uma
sombra densa cresceu atrás dele. Era Tino, o filho mais velho de tia
Iaiazinha, que juntava os peixes que eram zunidos da água, querendo
a traíra:
—
Essa vai para a lata de Tio Zé! É a maior da lagoa. O dono do sítio
tem todo o direito!
Manoel
viu que perderia o que já tinha como seu. E começou a choramingar.
Não iria mais para casa levando o troféu. O dono do sítio e da
lagoa deveria realmente ter direitos especiais. Sentiu que não
poderia evitar que Tino, um homem feito, sobrinho do dono da lagoa,
lhe tomasse o peixe. Então chorou alto, gritando que o peixe era
seu, pois pulara aos seus pés e fora ele quem o pegara.
Tino
esticou o braço para tomar o peixe. E Manoel, mesmo o querendo muito
para si, levantou suas mãozinhas para entregá-lo.
Papai,
que estava perto e ouviu tudo, aproximou-se, demonstrando espanto:
—
Quem pegou esse peixe tão grande?
E
pousando a mão no ombrinho de Manoel, perguntou outra vez:
—
Foi você, meu filho?
Tino
tentava explicar que o peixe pulara da água, tangido talvez por
algum dos pescadores. O moleque apenas se antecipara no trabalho de
resgatá-lo.
Papai
mandou Tino se calar e olhou para o pequeno Manoel, que continuava
choramingando, ainda segurando (mas quase soltando) o grande peixe, e
disse:
—
O peixe é seu, Manoel. Eu vi tudo desde o começo. Pode levar para
casa e dizer a sua mãe que foi você quem pegou.
Manoel
olhou agradecido para papai e saiu correndo, com os passinhos miúdos,
prejudicados por ter as mãos ocupadas, fazendo o mesmo caminho da
vinda, contornando as águas da lagoa, que continuaram sendo coadas,
na maior algazarra.
XXX
Sessenta
anos depois, eu ia passando pelo mercado Thales Ferraz, em Aracaju,
como faço quase toda semana. Ia comprar um quilo de castanha na
banca de meu primo Narciso, filho de uma tia de mamãe, chamada
Lozinha, do outro ramo da família, os Ferreiros da Matapoã. E,
passando pela grade de farinha de Manoel de Fausto, hoje um homem
idoso como eu, vi-o cochilando sobre a sacaria, escornado, roncando.
Ainda bem que era uma hora morta, perto das duas da tarde, e sem
fregueses.
Nunca
tive muita ligação com os filhos de Fausto de Seulia (o inimigo de
meu pai no povoado), mas Manoel sempre me tratou bem, sempre
retribuiu minha frieza com uma incoerente alegria.
Fiquei
olhando-o um tempo, assim dormindo, e fui tentado a mexer com esse
simpático semidesconhecido. Joguei-lhe, compassadamente, de seus
próprios sacos, caroços de milho, que o atingiram no peito desnudo,
ricocheteando e escorregando para o seu colo. Daí a pouco, ele
acordou e, ao me ver ali parado, abriu um largo sorriso. Levantou-se
do leito improvisado e veio apertar minha mão, que nem lhe havia
estendido ainda. Resolvi, então, fazer-lhe a pergunta que,
secretamente, carreguei sempre comigo:
—
Manoel, por que você demonstra tanta alegria quando me encontra? Eu
mereço? Agora mesmo, em vez de um esbregue, recebo um cumprimento
afetuoso!
Ao
que ele respondeu contando a história da traíra, a que narrei
acima. E acrescentou:
—
Nunca esqueci o gesto de seu pai naquele dia, ou melhor, tenho seu
pai e os Saracuras no meu coração. Nada marcou tanto a minha vida
como aquela traíra, que é o peixe que mais gosto. No coco me dá
mais prazer do que quebrar caranguejo na Atalaia ou chupar picolé de
mangaba da Cinelândia... E continuou:
—
Sempre tive vontade de contar a um de vocês essa história, mas
nunca me deram oportunidade. Foi a primeira vez que um Saracura
jogou-me carocinhos de milho...
Xxx
Os
outros vendedores de cereais do grande mercado olhavam intrigados
aqueles dois sexagenários abraçados ao pé de uma fileira de sacos
abertos.
Sobre o autor
Nasceu no povoado
Terra Vermelha, Itabaiana, em 06.07.1945, filho dos agricultores José
Francisco de Jesus e Josefa Oliveira de Jesus. Começou os estudos
nas escolas de dona Zinha (Terra Vermelha) e de Bernardete de Dona
(Cajueiro). Concluiu o primário e fez o ginasial no Seminário e
Colégio Diocesano de Aracaju. Fez o Científico no Atheneu
Sergipense. Fez o curso superior na faculdade de Economia da UFS,
Ciências Econômicas, formado em 1971.
Tem cursos de
especialização na IBM, Abc-bull e várias entidades de ensino do
País. Tem Pós graduação na Universidade do Distrito Federal, na
Cândido Mendes, na UNIT, em Sistema de informação e Gestão de
Imóveis.
Além de agricultor
(na infância) e Analista de Sistemas (Petrobrás, Rhodia Química e
Telergipe), exerceu outras atividades em sua vida profissional, que
ainda continua efervescente: Repórter, Redator e Apresentador
(jornal “A Cruzada” e Rádio Cultura de Sergipe), Serviços
Gerais (Paes Mendonça), Auxiliar de Escritório, Programador de
Computador, Analista de suporte técnico, Gerente de Informática,
Corretor de Imóveis, Gestor de Imóveis e, atualmente, escritor e
jornalista.
Publicou o livro “Os
Tabaréus do Sítio Saracura”, em 2008, agora na quarta edição,
restabelecendo os vínculos partidos com a atividade literária e com
o sítio rústico onde nasceu.
Publicou depois:
“Meninos que não Queriam ser Padres”, (em 20111, romance, na
segunda edição), “Minha Querida Aracaju Aflita” (2011, crônicas
premiado pela Secretaria de Cultura de Sergipe), “Tambores da Terra
Vermelha” (contos,2013), “Os Ferreiros” (contos, 2015), além
de uma dezena de cordéis.
É membro da
Academia Itabaianense de Letras (vice-presidente), do Instituto
Histórico e Geográfico de Sergipe, da Associação Sergipana de
Imprensa, e da Academia Sergipana de Letras (Cadeira número 10),
É casado com Josefa
Iracilda Pinheiro de Jesus, tem três filhos e três netos.
27 de fev. de 2017
Sistema de cumplicidade
Desde jovem, ouço críticas ácidas sobre os políticos. Essas críticas, com o passar dos anos, suscitou sentimentos de aversão e até ódio sobre aqueles que praticavam e viviam na política. Elas viam de cima para baixo e como a maioria dos brasileiros, estava cansado, revoltado e com sede de justiça.
Eu fui um jovem que sempre busquei compreender as coisas e Sofia me ajudou bastante nisso. Então, me debrucei sobre os livros. Queria respostas para as minhas dúvidas, os meus sentimentos; mas eles não me satisfizeram. Era preciso participar da política para saber como ela funcionava. E compreender, principalmente, por que políticos com vida pregressa maculada se perpetuam no poder
Nessa busca, compreendi que o nosso sistema político é um sistema de cumplicidade. É cúmplice o eleitor quando mercadeja o voto. É cúmplice o político quando aceita essa condição ou a impõe. O voto, nesse sistema, não cumpre sua função social, não elege políticos. Não passa de uma simples mercadoria. Nele, não dar para indigitar culpados, nem inocentes se levarmos em conta o modo como foram educados, a origem de cada um.
No cotidiano politico, defino esse sistema de comércio eleitoral, que nada mais é que mercadejar o voto. Pouco se fala nele, seja por ignorância ou má-fé. Ele pode ser dividido em compra e venda de voto; favores e financiamento. A sua prática é comum e visível em todos os municípios deste país. O Congresso é apenas a dimensão de tudo isso em situações muito mais complexas.
O sistema é péssimo, pois, abriu e abre espaço para que todo tipo de gente chegue ao poder. Ele facilita e pari a corrupção. Nesse sistema, o político acusa o eleitor de vender o voto e o eleitor acusa o político de não fazer nada por ele. E nisso, nosso país vive procriando políticos de toda espécie. Exemplo disso é o que estamos vivenciando em nossos dias.
Sei que, enquanto só se apontam os erros das tribunas e não se buscam mecanismos efetivos que sirvam de contraponto na reeducação política de nossas crianças, é tolo quem acredita em mudanças significantes nesta república ou que operações como a Lava Jato passará o país a limpo. Tudo bobagem! Tudo engodo!
É preciso entender uma coisa: políticos não são eleitos por si. É isso que se deve discutir. É isso que crianças, adolescentes e jovens devem compreender. Sem essa compreensão, o sistema permanecerá como se acha, camuflando-se de democracia.
Em vez de empaturrarem as redes de picuinhas, links e discursos fascistas ou se tornando papagaios midiáticos para descriminalizar a política e demonizar pessoas, deveriam abrir espaço para a discussão do sistema de cumplicidade. É ele que precisa ser combatido com veemência. No dia que a sociedade passar a discuti-lo e criar mecanismos de enfrentamento contra esse sistema, muita coisa mudará neste país.
Por falta dessa discussão, o que se ver é o saudosismo militar, a extrema direita tomando folego, os partidos atolados em escândalos, os movimentos sociais lutando para que as conquistas sociais não sejam retiradas. Mas nenhum desses discutem o sistema de cumplicidade, não propõe o combate a corrupção de base, matriz de todas as outras corrupções. Preferem a passividade. Preferem ser ventríloquo, preferem enxergar a corrupção do outro. Ilude-se quem acha que o problema da corrupção do nosso país seja exclusivo de políticos ou de partidos.
E concluo com esta questão: se os candidatos, que não são eleitos por si, fossem eleitos sem a prática do comércio eleitoral, a maioria dos nossos políticos seriam honestos e qualificados? Acredito que sim.
26 de fev. de 2017
O curioso abaporu
Essa estranha figura é o Abaporu, o mais importante quadro já produzido no Brasil. Tarsila do Amaral pintou-o como presente de aniversário a Oswald de Andrade, seu marido na época. Quando ele viu a tela, assustou-se e chamou o amigo Raul Bopp para tentar decifrá-la. Intrigados, concordaram em que representava algo excepcional. Tarsila, apelando para os rudimentos de tupi-guarani que conhecia, batizou-a de abaporu - aba, "homem", "índio"; poru, "homem comedor de carne humana", "antropófago", "canibal".
O quadro inspirou a criativa cabeça de Oswald. levando-o a escrever seu "Manifesto Antropofágico", berço de um movimento que, segundo ele, "deglutiria" a cultura europeia, transformando-a em algo bem brasileiro. Embora radical, a nova corrente teve sua importância pelo que representava em termos de exacerbado nacionalismo. A tela é, até hoje, a mais cara já vendida no Brasil (US$ 1,5 milhão), e foi comprada por um colecionador argentino.
Mas qual o significado do quadro? Difícil dizer, mas na opinião de certos círculos, o homem avantajado com a cabeça pequena seria o brasileiro desmiolado. Quanto as pés e às mãos, enormes, era como Tarsila via em nosso povo sofridos trabalhadores. O simbolizaria a penosa rotina do homem do campo, dando duro debaixo de sol inclemente (grifo meu). Ainda hoje a polêmica obra tem avivado acaloradas discussões.
Língua Portuguesa. Ano 4 - Número 59 - setembro de 2010. p. 64
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