19 de set. de 2008

O segredo escondido na prateleira


— Por favor, vá até a prateleira e me traga alguns fragmentos. Se por acaso você não os encontrar, procurai-os nos cantos da casa. E não demore. Obrigado!
 
No fundo escuro da prateleira uma criança chorava e ninguém ouvia seu pranto.
— Por que você está chorando?


— Porque estou com fome. Ninguém saciou minha fome.

Também chorei com ela porque estava com fome. E nós chorávamos e ninguém nos ouvia. Estávamos na parte mais escura da prateleira, onde costuma ficar a traça.


Então peguei linha, agulha e o cesto. Peguei algumas páginas e fiz pão, convidei-o para sentarmos em cadeiras de folhas. Começamos a comer, comer, comer...

 
Meus cadernos, 1998.
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24 de ago. de 2008

Posta de peixe


Meio dia...

Ele chegou faminto do trabalho. Foi a cozinha, abriu a porta e a brisa o recebeu abafada. Meio metro da porta havia um estreito banheiro. A sua direita uma lavanderia. Ao pé dela, um gato vindo não sabia de onde com uma posta de peixe.

Aquele gato trouxera para o seu quintal um furto de uma cozinha, não sabendo de onde nem tendo idéia de onde. 

Deu dois passos. O gato, ao perceber que se aproximava, ergueu os olhos semicerrados e ronronou para ele. Talvez, no pensamento de gato, ele seria mais um felino faminto que disputava aquela posta.
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18 de ago. de 2008

A existência que dói




Era visível no olho esquerdo uma remela esverdeada. A face, abatida, expunha a dor, a tristeza contida no peito. O lado direito perdera o movimento por causa de um derrame. Não costurava mais, não lavava a louça, nem punha na mesa o café para os filhos e para o esposo. Aquilo traspassava a sua alma e a reduzia a infelicidade. As lágrimas, companheiras de sempre, não mediam esforços para torná-la ridícula para os incompreensivos. E não eram só as lágrimas que entrou em sua vida, mas os antidepressivos, a impaciência e o murmúrio. Mas, em meio a essa "tempestade", sobrevivia com poucas e nobres lembranças que não voltam mais.

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8 de ago. de 2008

Abrir e fechar o dia


Hoje fui acometido por uma insônia miserável. Volvia-se sobre o colchão e os meus olhos viam pontinhos luminosos na escuridão. Os grilos se foram, os pardais pipilavam e abriam o dia. Um montão deles era um coral. Eu não fiquei para trás, abri também o dia com as orelhas e da minha cama vi um dia diferente com nuvens espessas e paradas.

Os primeiros raios de ressaca surgindo com uma preguiça própria do céu. Olhos começaram a se abrir, mãos começaram a lavar os rostos. Os primeiros movimentos saem na rua, algumas portas se acordam e para a rua. Os pardais se espalham em vôos diferentes e buscam na variedade do cardápio o dia. Saem assim como o homem para a vida. Mas, eu fico coberto com o lençol e os  meus olhos estão pesados. Um friozinho está nos cantos do meu quarto, menino sapeca, sorrateiro.

LIMA, Ronaldo Pereira et all. Ritmo Vital: contos, poesias e crônicas. São Paulo, Edições AG, 2007.
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A menina que passa


Lá vai a menina que passa
E os meus olhos que pregam uma peça em frente da praça
Lá vai todo o encanto
Que é livre quando canto ao meu amor
E todos olham na praça
Que eu, passo a passo, vou com pressa.
Lá vão os meus pensamentos
Todo mágico, todo humano
Que foge e se abafa de tanto lamento

Lá vai o meu sorriso com o vento
Com cara de bento
E uma angústia por dentro
Lá vai, lá vai e as minhas lágrimas
Não vão, e você menina, lá vai.

Lá vou eu,
Com a menina que passa,
As mãos que passam e os pensamentos que montam uma peça
No meio da praça.
Não me peça menina que passa, a minha face
E todos te olham e me olham.
Mas entendam: ela é a menina que passa com muita pressa pela praça


(LIMA, Ronaldo Pereira de et all. O lugar da poesia e da prosa: Antologia, pp. 22-23. Rio de Janeiro: Taba Cultural, 2008).
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