24 de mar. de 2010

O livro


Houve um tempo em que eu reclinava a minha cabeça sobre ti. Nos momentos de frio, você cobria com as suas páginas sábias e ardentes meu peito. Quando tinha sede, bebia da sua fonte e dela me banhava para me purificar das impurezas do coração. Com os mais puros e singelos fonemas, vestia a minha nudez. As tuas páginas registram o embrião do mundo e dos homens. Mesmo assim, elas se entrelaçam e neste labirinto as interrogações surgem. Apesar desses minotauros, eu as degusto tranquilamente sob uma árvore. Você é o único de braços abertos no móvel de casa.
Meus Cadernos, 1997.
Leia Mais ►

17 de mar. de 2010

Horasão


Nesse exato momento a horasão do relógio não impede que alguém passe à noite com o estômago vazio.

Nesse instante de segundos, alguém está no relento namorando o frio colchão da rua.

Nesse exato momento o relógio não se cansa das preces. Preces de morte, de loucura, de estrelas fugitivas...

Nesse instante alguém não percebe a folha caindo, nem uma criança, um velhinho ou uma perdida bala.

Nesses momentos, instantes nus de uma horasão sem cor; o fiel cristão do tempo, da vida ora alegre, ora triste.

Hora tão banal, hora tão medíocre.

E a horasão do relógio não recomendou a alma do morto a Deus.

Meus cadernos, 1997.
Leia Mais ►

27 de fev. de 2010

Oscilação


O vaivém retido nos meus olhos me põe em estado de estátua. Minha aparência de dentro me dá uma face de vários ontens, consumindo-me inteiro.

Ondas se levantam e me sacodem a beira de minhas pálpebras cansadas. Ondas que não vem do mar, mas de mim.

Meu corpo não se importa com a agitação das bocas, das palavras, das pernas exaustas e urbanas... Alguma coisa mexe, se aloja, faz ninho. Minhas são as horas cheias de calma num balanço das ondas…
Meus ouvidos são do ser vestido de carne que ouve apenas os sussurros oniscientes. 
Essa manhã não estou para o mundo.
Lima, Ronaldo Pereira de. Agonia Urbana. Rio de Janeiro, RJ, 1ª ed., CBJE, 2008.
Leia Mais ►

7 de fev. de 2010

Pequeno, mas maior que o mundo


Eu estava deitado no meu silêncio e uma súbita amiga quebrara-o, assim como eram quebradas as suas lágrimas. Ao vê-la, emudeci, vivi e senti a morte com repugnância e mal-estar.
 
As lágrimas dela tinham uma nobre explicação: seu filhinho, absolutamente seu; saído de suas entranhas e quentes estava adoentado. A sensibilidade daquela pobre mãe invadiu os meus tímpanos, explodindo sob os caibros o desespero, o desequilíbrio, a necessidade. Com veemência que só as mães possuem nesses momentos, ela se dirigiu a outra mãe e disse:
 
— Mulé, me empreste dinheiro para eu comprar remédio pró meu filho. Já fui pró SESP e lá não tem não. Procurei o prefeito e ele nem me deu atenção. Se eu não comprar remédio pró meu filho, ele pode morrer. Ele não pode ficar sem esse remédio. Lhe peço pelo amor que você tem a Deus e a seus filhos que me empreste (Os olhos dela eram duas fontes de amor, carinho, cuidado…).

— É uma pena mulé, mas não tenho. Se tivesse, taria em suas mãos (Minha mãe se comoveu e as lágrimas dela se uniram as da amiga).

E o “não”, vindo da boca e das lágrimas da minha mãe nunca me saiu da cabeça, assim como aquela criança, o criminoso público, a falta de dinheiro. Naquele momento multiplicaram-se por dois o desespero, a angústia e o medo.
 
E foi ali, naqueles instantes que vi uma flor perdendo a beleza e cair de tanta dor. E o número pequeno (seis) foi maior que o mundo.
Leia Mais ►

9 de jan. de 2010

Voto não é mercadoria

Eu sou do tipo que condeno o comércio eleitoral por entender que só causa malefícios a população e procria falsários, larápios, gatunos.

Essa de culpar o povo porque ele vende o seu “poder” é uma ladainha da imprensa, dos incautos e dos politiqueiros cansados com a sua própria prática estúpida que os impedem de cumprir o dever de “representar o povo”.

O que ocorreu e ocorre é que o voto perdeu a sua função política, social, ética, moral; tornando-se um bem material, comercializável, pechinchado; o que nos causa vergonha.

Para compreender com maior clareza, faz-se necessário voltar nossos olhos para a fonte primária, isto é, os municípios. Tudo tem início nos municípios, por meio de cabos eleitorais e vereadores. Esses profissionais do comércio eleitoral entendem que o voto é matéria-prima negociável, lucrativa, devendo ser repassada para frente no tempo certo e na hora certa.

Essa negociação se intensifica nos períodos eleitorais, tornando-se uma mercadoria mais cara.

O que na verdade ocorre é um comércio milionário, irresponsável, imoral; configurando-se no banditismo e em práticas ilícitas, caracterizadas pela corrupção e impunidade.

Não se pode culpar o povo por essas práticas mesquinhas, apesar de ele participar delas de forma inconsciente; porque esses politiqueiros entenderam que sem saúde, sem educação, sem emprego; as pessoas se tornam vulneráveis.

Por isso os cofres públicos são assaltados com a ponta da caneta e o povo é julgado por uma parte de si porque concede o “poder” aqueles políticos de ficha suja.

Voto não é mercadoria. É cidadania, dignidade.
Leia Mais ►