23 de mar. de 2023

Solar de Camuciatá

O fazendeiro Cícero Dantas Martins, nascido em 1838, foi o fundado do casarão, onde viveu por muitos anos. Designado bar]ao de Jeremoabo em 1880 por ordem do imperador D. PedroII, Cícero se tornou um homem de grandes posses no final do século. Adquiriu dezessete fazendas só em Itapicuru. Mantinha outras doze em Bom Jesus, município que depois foi rebatizado justamente como Cícero Dias.

O poder político de Cícero sofreu um abalo a partir de 1874, com as andanças do beato Antônio Conselheiro (1830-1897). A pregação arregimentou lavradores por todo sertão, esvaziando propriedades da região. Em pé de guerra, os velhos “cononéis” pediram ao Exército o fim do arraial de Belo Monte. Cícero tinha verdadeiro ódio pelo Conselheiro, do que são prova algumas das cerca de 3 mil cartas deixadas pelo barão no Solar de Camuciatá. No auge do conflito, em agosto de 1897, o barão lembrou, em carta enviada a um compadre, ter sido um dos primeiros a advertir sobre a ameaça. Disse ter sido criticado injustamente quando pediu um reforço de cem praças do Exército para perseguir o beato.

(…)

A rivalidade entre o barão e o Conselheiro é citada pelo escritor Euclides da Cunha no clássico Os sertões apenas numa nota de rodapé. Mas ganhou contornos épicos em A guerra do fim do mundo, de Mário Vargas Llosa, romance inspirador na obra de Euclides. Llosa, que nos anos 1980 fes pesquisas no casarão Camuciatá acompanhado do historiador baiano José Calazans, transformou Cícero, rebatizado de “barão de Canabrava”, numa figura-chave no conflito, responsável por aglutinar “as forças da bahia” contra o Conselheiro.

VALENTE, Rubens. Operação Banqueiro: uma trama brasileira sobre poder, chantagem, crime e corrupção. A incrível história de como o banqueiro Daniel Dantas escapou da prisão com apoio do Supremo Tribunal Federal e virou o jogo, passando de acusado para acusador. São Paulo: Geração Editorial, 2014. p. 24-25.


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19 de mar. de 2023

Irmã da covardia


Era de madrugada no povoado Alecrim quando Felipe bateu desesperado na porta da casa de Ivan. A porta foi aberta, mas a cara e o coração estavam fechados. Isto era visível nas formas geométricas da face dele. Felipe nem importância deu porque para ele a única coisa que importava era a mulher que estava prestes a parir.

Ivan alegou que não poderia dar assistência porque os faróis do carro estavam com problemas e que havia pouca gasolina no tanque. Sem dar importância aos apelos de seu concidadão e eleitor, simplesmente disse que não podia atendê-lo; voltando-se para os seus aposentos resmungando: “Dei aquele infeliz o telhado da casa e no dia da eleição ele ainda veio me pedir dinheiro. Esse povo é assim: se a gente deixar, tira o nosso couro”.

Felipe, angustiado e vendo a mulher se contrair de tanta dor, foi às pressas a casa do cunhado e o chamou para lhe dar socorro. Ao chegarem, carregou a esposa até às margens do rio São Francisco, pondo-a em um barquinho, remando rio abaixo até a cidade de Penedo. No trajeto, quase desistia porque os seus braços já não mais aguentava de tanta dor e desespero, mas quando via o sofrimento dela; persistia. Ao chegar ao porto das lanchas de manhãzinha, os pescadores o ajudaram, chamaram a ambulância e levaram-nos para o hospital público.

Após alguns minutos de angústia, o médico que os atendeu se dirigiu para Felipe e disse: Lamento, seu filho estar morto; mas sua esposa estar fora de perigo e passa bem. Aquelas palavras foram ao mais profundo de seu miolo e por lá permaneceu feito boia fixa. As lágrimas desciam feito nascente.

Passando algum tempo, o cunhado percebeu que ele não estava bem e o chamou para espairecer, indo ao comércio. Lá, deu de cara com Ivan. O sangue subiu para a cabeça, sentindo-se enganado, traído, injustiçado. E o pior, sabia que seu caçula estava morto porque ele negara socorro a sua esposa. Sem pestanejar, pegou a peixeira que estava nos quartos e empurrou-a até o cabo no ventre dele. As vísceras caírem no asfalto. Quem por perto estava entrou em pânico, outros saíram correndo e Felipe simplesmente fugiu no barquinho rio afora e ninguém nunca mais o viu.

A mídia local entre as linhas o descrevia como um bandido perigoso que precisava ser caçado e capturado. Já Ivan foi elogiado como boa pessoa, que não fazia mal a ninguém, um bom colega de Câmara e um homem trabalhador.
 
Para a mulher de Felipe sobrou as tarjas pretas, muitas vezes negadas nas unidades de saúde; tendo que recorrer ao Ministério Público.
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1 de mar. de 2023

Revista A ordem e a semana de 22.

Jackson de Figueiredo
(…) Em 1922, em pleno coração da aventura modernista, um grupo de católicos renovadores chefiados no Rio pelo sergipano Jackson de Figueiredo funda o Centro Dom Vital, entidade que tem como eminência parda o arcebispo do Rio de Janeiro, d. Sebastião Leme Cintra, e que expressa suas teses nas páginas da rabugenta 1A ordem, revista mensal que se torna uma espécie de bíblia na nova igreja. O grupo se opõe a Oswald de Andrade, Mário de Andrade e sua trupe de modernistas, lançados por ele no balaio comum e insensato dos “esquerdistas disfarçados de vanguardistas”. E não esconde suas flagrantes simpatias pelo nascimento do fascismo (…).

(…) Jackson de Figueiredo Martins, rapaz agitado e furioso nascido em1891, em Aracaju, morreu precocemente aos 37 anos, em 1928, e foi o mais virulento e dramático pensador católico do país no início do século. Influenciado pelas ideias de Blaise Pascoal – filósofo cujas ideias digeriu do modo que bem entendeu, usando seus textos mais como tábuas de um mandamento que como estímulo a reflexão –, Jackson de Figueiredo se converte ao catolicismo em 1918. Logo começa a escrever compulsivamente. Seus artigos pregam, em essência, o primado da vida sobre a ortodoxia cristã.

O que a princípio pode parecer uma ideia estimulante, a primazia da vida em detrimento da rigidez espiritual, na mente de Jackson de Figueiredo se transforma numa construção ortodoxa ainda mais cruel. Jackson de Figueiredo pensa que a religião deve deixar de ser apenas um dogma a ser adotado e praticado nos rituais de fé, para se tornar antes de tudo “uma maneira de viver”. Deve ser introjetada como um conjunto de normas impiedosas que regem cada ato do indivíduo. Jackson de Figueiredo quer integrar natural e sobrenatural. Acredita no poder da razão para promover esse casamento, bastando para isso que o homem use raciocínios de ferro para dominar os instintos baixos da carne e a miséria da condição humana. Torna-se um homem severo, que preza a rigidez hierárquica, defende o respeito meticuloso à ordem e à tradição e chega a exercer o posto de “censor de imprensa” durante o governo Artur Bernardes.

CASTELLO, José. Vinícius de Moraes: o poeta da paixão.Uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. p.71;75.

1A Ordem, revista católica fundada pelo pensador sergipano Jackson de Figueiredo (nota de rodapé).

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25 de fev. de 2023

A função social do velho é lembrar e aconselhar

Ecléa Bosi

A função social do velho é lembrar e aconselhar – memini, moneo – unir o começo e o fim, ligando o que foi e o porvir. Mas a sociedade capitalista impede a lembrança, usa o braço servil do velho e recusa seus conselhos. Sociedade que, diria Espinosa, “não merece o nome de Cidade, mas o de servidão, solidão, barbárie”, a sociedade capitalista desarma o velho mobilizando mecanismos pelos quais oprime a velhice, destrói os apoios da memória e substitui a lembrança pela história oficial celebrativa.

(...)

Como se realiza a opressão da velhice? De múltiplas maneiras, algumas explicitamente brutais, outras tacitamente permitidas. Oprime-se o velho por intermédio de mecanismos institucionais visíveis (a burocracia da aposentadoria e dos asilos), por mecanismos psicológicos sutis e quase invisíveis (a tutelagem, a recusa do diálogo e da reciprocidade que forçam o velho a comportamentos repetitivos e monótonos, a tolerância de má-fé que, na realidade, é banimento e discriminação), por mecanismos técnicos (as prisões e a precariedade existencial daqueles que não podem adquiri-las), por mecanismos científicos (as “pesquisas” que demonstram a incapacidade e a incompetência sociais do velho).

Que é, pois, ser velho na sociedade capitalista? É sobreviver. Sem projeto, impedindo de lembrar e de ensinar, sofrendo as advertências de um corpo que se desagrega à medida que a memória vai-se tornando cada vez mais viva, a velhice, que não existe para si mas somente para o outro. E este outro é um opressor.

BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças de velhos. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. pp. 18 e 19.

Entrevista:

Iniciado em 1994, antecipando-se à promulgação do estatuto do idoso, o Programa Universidade Aberta à Terceira Idade da USP oferece semestralmente milhares de vagas aos idosos em disciplinas regulares da graduação e também em atividades especiais. Após 23 anos e 46 edições, a Pró-Reitoria de Cultura e Extensão Universitária presta homenagem à professora Ecléa Bosi, criadora e entusiasta da iniciativa, em nome de todos os alunos que foram beneficiados pela ação. A professora coordenou o programa até o final de 2016, quando transferiu a função para o Dr. Egídio Dorea, que já estava à frente também do programa Envelhecimento Ativo, do Hospital Universitário da USP.

Saiba mais em: http://prceu.usp.br/noticia/terceira-idade-na-usp/

 

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