12 de abr. de 2011

Retrato

Vi a minha face dentro do espelho.


Mas quando virei o rosto


Eu a perdi no esquecimento.


Passo por uma rua inclinada e a vejo numa soleira.


Dei-lhe um riso contido, mas ela não percebeu.


Sigo adiante e percebo meus pés pisarem fundo.


A minha face não sabe a hora de parar, nem deseja o asilo.


Ela só quer se rever no espelho



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3 de abr. de 2011

A espectadora


            Carregava no corpo o cansaço que se acumulou durante seus setenta e cinco anos. Anos estes nada fáceis: sofreu passivamente com os insultos das raparigas, dos bafos incontáveis de cachaça e com os partos complicados.

O corpo, acomodado, não recepcionava as novas tecnologias como muitos da sua idade. Feito uma gata, esparramava-se no sofá, cochilava; depois vai para a cama, fica por lá algum tempo e senta-se numa confortável cadeira. De lá ocupavam os dedos com as bolinhas do terço, mas os olhos estavam voltados para os movimentos da rua.
A reza acabou. Os olhos deixaram à rua e os filhos apareceram em sua mente; um por um. Eles eram a sua mais séria preocupação.  Intrigas, fofocas, ciúmes, calúnias. Mesmo assim conviviam indiferentes e hipócritas. Esses fatos a entristeciam a ponto de suplicar no silêncio a morte. Uma lágrima envelhecida umedecia os sulcos da face.
Ela pensava: Eu os pari. Cuidei deles com amor, carinho. Fiz de tudo para eles estudarem, arranjar emprego. Quando o pai era vivo, todos vinham para as festas que ele fazia. Hoje, sumiram. Às vezes é que aparecem. E quando aparecem é para mim fazer raiva. Eu deveria na minha velhice ter era paz, sossego e não tanto sofrimento.
Esses eram os pensamentos que lhe causavam angústia, pois, via-os tomar cada um o rumo de sua natureza. Lamentava o seu estado deplorável. Faltava-lhe vigor para interferir como dantes, deixando o simples lugar de espectadora e interferindo em suas vidas, seus destinos. Hoje, ela não passava de uma simples espectadora das preocupações que seus filhos lhe causavam.
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14 de mar. de 2011

Para você


O amor tem uma regra única para aqueles querem vivenciá-lo:
O eu do amor não ocupa o espaço de outro eu.
Eles se partilham, tornando-se uma só cabeça;
Deixando o âmago adornado.
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Utopia a covardia

Outro dia conversava tranquilamente com algumas pessoas sobre o atual modo de se fazer política, como o sistema é perverso e como as pessoas estão vulneráveis a ele.

Neste colóquio, expus que a mudança na escolha dos empregados eletivos só seria possível se os eleitores começassem a vê-los como tais e não como investidores, comerciantes. Para isso acontecer era necessário que o combate ao comércio eleitoral não ficasse retido nas crônicas, muitas vezes a serviço de proveito próprio, nem no período eleitoral. Esse combate deveria ser todos os dias. Mas a minha exposição sofreu resistência por parte delas. Notei que elas estavam acostumadas a situação e davam a impressão de não querer mudanças. Isso era evidente quando diziam: “A política é assim mesmo. O que é que a pode fazer? Não tem jeito não. O povo só vota em quem dar alguma coisa”.

Fiz de conta que não as ouvi e insisti que a mudança era possível se houvesse empenho de cada um dos que discordam dessa prática, organizando-se, aprofundando-se nas questões políticas e tentando combater veementemente a compra e venda de voto. Umas olharam para as outras, o mau juízo se instalou entre elas e uníssonas concordaram que o sistema é assim mesmo, dando como encerrada aquela conversa.

Por alguns momentos silenciaram, mas as caras se retorciam achando que as minhas ideias de uma reeducação política eram inviáveis. Quando não tiveram mais o que argumentar, disseram:

— Você é um sonhador. Um utópico. Parece que quer mudar o mundo imudável. Você não estar vendo que o sistema é assim mesmo. O povo só vota em quem dar alguma coisa. Pouquíssimos são aqueles que votam pensando num todo. Se candidate prá você ver como é! O povo só vota em quem dar alguma coisa.
Olhei para cada uma delas. Depois de alguns segundos disse-lhes:

— Prefiro que digam que sou um sonhador porque reconhecem a minha esperança nas pessoas. Prefiro que digam que sou utópico porque sabem que não sou covarde, não me dobro, não me curvo a este sistema vil e mesquinho. Ao menos não acovardo as minhas falanges quando ponho nas páginas as minhas opiniões, não as reprimo ante os canalhas, ladinos que se aproveitam da pobreza de uns e da fraqueza de outros ditos “esclarecidos”, “cultos”, que passivamente não reagem contra esta prática maldita que só tem causado miséria e dor. Antes, compreendem a situação e quando tem oportunidade, tiram proveito dela. Quando estão insatisfeitos com esta ou aquela administração jogam a culpa para o povo simples. Preferem a mancebia da impiedade.

Depois da minha fala não existiram outras, até porque elas estavam aborrecidas. Levantei-me, as cumprimentei e sai caminhando suavemente pelas ruas.
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