4 de abr. de 2010

Andando de lancha

Vinha tranquilamente pela Fernandes de Lima, na minha pequena Colégio. Encontrei alguns amigos sob a copa de um pé-de-matafome próximo ao porto das lanchas. Eles conversavam sobre o descaso das administrações das cidadezinhas e para justificarem os erros dessa ou daquela administração, melhor dizendo, da corrupção citaram esta frase desbotada: “O erro vem lá de cima”. Em seguida deram por exemplo Arruda (que não serve para remédio), o mensalão, o Congresso e outras coisas. Eu calado estava, calado permaneci.
A lancha começou a buzinar. Dei até logo, desci a rampa do porto, entrei em uma delas. A pouca distância uma música dita de “Axé” tomava conta daquele espaço. Mas apesar do sol escaldante, a brisa tocava com suavidade a minha pele, fazendo-me pensar a respeito do sistema político, principalmente nas cidadezinhas.
O vai e vem de mandatos não se renovam. As praças continuam as mesmas. Servidores não são valorizados. Quando o gestor é cínico, os médicos atendem os pacientes, transcrevendo a receita em pedaços de folhas A4, as perspectivas dos jovens nem a dos adultos se renovam. As únicas coisas que permanecem são os sentimentos vis, torpes e fúteis dessas administrações, a ganância, o conluio com magistrados medíocres.
O tó, tó, tó da lancha não me roubava às ideias, as reflexões. Afinal de constas, este é um ano eleitoral e de canalhice; até porque os comerciantes deixarão as suas tribunas, fazendo as suas ínfimas visitas as cidadezinhas comprando cabos eleitorais e usando um artifício sem graça e pálido, que é a maldita das promessas.
A minha frente alguém esculhambava a administração local. Coisa que não serve. Imaginei: “Denunciar é um dever de todo cidadão e exigir da Câmara, apesar dos receios. O judiciário inspira dúvidas. A única e sábia solução é no período eleitoral. Aí, dar-se início a um fatigante, mesquinho comércio que mobiliza milhões e muita gente. É aí onde tudo vai se repetir: as reclamações do povo, as esculhambações, os jovens calados, os puxa-sacos vibrando.
Desci da lancha na cidade vizinha com uma certeza única que carrego faz anos: enquanto o voto for tratado como mercadoria, sempre teremos leis péssimas, o SUS um matadouro, um Judiciário “harmônico” e um povo sem esperança...
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24 de mar. de 2010

O livro


Houve um tempo em que eu reclinava a minha cabeça sobre ti. Nos momentos de frio, você cobria com as suas páginas sábias e ardentes meu peito. Quando tinha sede, bebia da sua fonte e dela me banhava para me purificar das impurezas do coração. Com os mais puros e singelos fonemas, vestia a minha nudez. As tuas páginas registram o embrião do mundo e dos homens. Mesmo assim, elas se entrelaçam e neste labirinto as interrogações surgem. Apesar desses minotauros, eu as degusto tranquilamente sob uma árvore. Você é o único de braços abertos no móvel de casa.
Meus Cadernos, 1997.
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17 de mar. de 2010

Horasão


Nesse exato momento a horasão do relógio não impede que alguém passe à noite com o estômago vazio.

Nesse instante de segundos, alguém está no relento namorando o frio colchão da rua.

Nesse exato momento o relógio não se cansa das preces. Preces de morte, de loucura, de estrelas fugitivas...

Nesse instante alguém não percebe a folha caindo, nem uma criança, um velhinho ou uma perdida bala.

Nesses momentos, instantes nus de uma horasão sem cor; o fiel cristão do tempo, da vida ora alegre, ora triste.

Hora tão banal, hora tão medíocre.

E a horasão do relógio não recomendou a alma do morto a Deus.

Meus cadernos, 1997.
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27 de fev. de 2010

Oscilação


O vaivém retido nos meus olhos me põe em estado de estátua. Minha aparência de dentro me dá uma face de vários ontens, consumindo-me inteiro.

Ondas se levantam e me sacodem a beira de minhas pálpebras cansadas. Ondas que não vem do mar, mas de mim.

Meu corpo não se importa com a agitação das bocas, das palavras, das pernas exaustas e urbanas... Alguma coisa mexe, se aloja, faz ninho. Minhas são as horas cheias de calma num balanço das ondas…
Meus ouvidos são do ser vestido de carne que ouve apenas os sussurros oniscientes. 
Essa manhã não estou para o mundo.
Lima, Ronaldo Pereira de. Agonia Urbana. Rio de Janeiro, RJ, 1ª ed., CBJE, 2008.
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