25 de ago. de 2009

Abandono e rejeição


Aos oito anos de idade Carla fora abandonada pela mãe, ficando na companhia de um pai epilético, alvoroçado e cachaceiro; apesar de trabalhador, além de uma irmã de quatro anos. A mãe era desses tipos de mulheres que entregou o corpo e a alma para as drogas, a prostituição, ao roubo. E era, também, dada aos bares.

Para Carla lhe sobraram apenas os afazeres de casa: cuidar da irmã caçula, cozinhar, preocupar-se com o pai, costurar e quando lhe sobrava tempo, ensopava a face com lágrimas miúdas. No seu peito juvenil se alojava a melancolia, o desespero.

Cheia de angústia, de dor; saiu outro dia de casa com um único pensamento: morrer. Esta foi a escolha que fizera para se livrar do peso que estava sobre sua vida. Na ausência do pai, pegou os comprimidos dele que combate a epilepsia e foi à escola. Estava pronta para tomá-los e dar fim a sua vida, mas a professora percebeu algo errado e interveio, tomando dela os comprimidos, abraçando-a. Carla apenas soluçava no ombro da professora.

Após dois anos, cinicamente a mãe retornou para casa e, o pai, covardemente a aceita e Carla; sentindo no peito as fisgadas da rejeição e abandono pede para o pai escolher entre ela e aquela mulher que se diz ser sua mãe. Ela perde a questão. Apela para a casa da avó que, por ruindade, não quer mais um fardo para sua vida. Sua avó é uma mulher passiva e lhe aconselha a aceitar a mãe. Em prantos, desabafando com a tia, escolhe como melhor solução a morte.

Outro dia fora à casa da avó para almoçar, pois, não queria partilhar àquela hora com o pai; muito menos com a mãe. A avó a recebeu nestes termos: “Já almocei e não tem mais comida. Por que você não volta para casa e come lá?”

Sem apoio moral da avó; saiu pelas ruas em um pranto silencioso e amargo.
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24 de nov. de 2008

Farinha com água


Meio-dia. O mormaço entra pela porta escancarada, ficando retido nos cantos da casa. Olhos pequenos e pretos brilham de tristeza, desfalecidos. A mãe os olha com um nó na alma, impaciente. O marido vai para a saleta.

Os filhos sentados em uma mesa que fora do vizinho, com quatro cadeiras descadeiradas; esperam silenciosamente pela mãe. O silêncio negro da fome põe no rosto as formas geométricas da tristeza, do desalento.

Ela se afasta. Pega um bule, água na torneira, botijão prestes a acabar e leva-o ao fogo. À água ferve, borbulha. Ela tirou o bule do fogo e saiu colocando em cada prato (Nem tempero havia). O vapor subia prendendo aquela família no mormaço da dor, do desespero.

Em seguida ela, a mãe, pegou o resto de farinha azeda e dividiu em partes iguais. Uma xícara para cada filho. Os meninos mexiam a colher, tristonhos sem querer comerem. Mas uma força maior estava dentro deles, forte, robusta: A FOME.

Depois ela se ajuntou ao marido e a FOME.
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19 de set. de 2008

O segredo escondido na prateleira


— Por favor, vá até a prateleira e me traga alguns fragmentos. Se por acaso você não os encontrar, procurai-os nos cantos da casa. E não demore. Obrigado!
 
No fundo escuro da prateleira uma criança chorava e ninguém ouvia seu pranto.
— Por que você está chorando?


— Porque estou com fome. Ninguém saciou minha fome.

Também chorei com ela porque estava com fome. E nós chorávamos e ninguém nos ouvia. Estávamos na parte mais escura da prateleira, onde costuma ficar a traça.


Então peguei linha, agulha e o cesto. Peguei algumas páginas e fiz pão, convidei-o para sentarmos em cadeiras de folhas. Começamos a comer, comer, comer...

 
Meus cadernos, 1998.
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24 de ago. de 2008

Posta de peixe


Meio dia...

Ele chegou faminto do trabalho. Foi a cozinha, abriu a porta e a brisa o recebeu abafada. Meio metro da porta havia um estreito banheiro. A sua direita uma lavanderia. Ao pé dela, um gato vindo não sabia de onde com uma posta de peixe.

Aquele gato trouxera para o seu quintal um furto de uma cozinha, não sabendo de onde nem tendo idéia de onde. 

Deu dois passos. O gato, ao perceber que se aproximava, ergueu os olhos semicerrados e ronronou para ele. Talvez, no pensamento de gato, ele seria mais um felino faminto que disputava aquela posta.
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