Pe. Antônio Vieira |
(…) Vieira chegou ao Brasil em 1614, aos 6 anos. Seu pai conseguira um emprego como escrivão na capital da Colônia, Salvador. Ao lado de Pernambuco, a capitania onde o menino cresceu era a mais rica (em 1612, havia cinquenta engenhos de cana-de-açúcar). Para manter essa economia funcionando, Portugal escravizava mão de obra africana. De acordo com o historiador Stuart Schwartz, entre 1595 e 1840, 147 mil negros africanos foram trazidos ao Brasil para trabalhar na lavoura. Só na Bahia, na década de 1620, entravam cerca de 2.500 a 3 mil escravos por ano.
Durante a infância e adolescência de Vieira, a escravidão africana serviu para Portugal manter o desenvolvimento econômico e explorar novas terras. Foi também um período em que a igreja se banhava em filosofias medievais para defender que, do ponto de vista de Deus, não havia pecado algum na escravização; pelo contrário, a prática era necessária para os negros encontrarem o caminho dos céus.
Para a igreja, o regime escravocrata era fundamental à manutenção da ordem do mundo. São Tomás de Aquino, inspirado em Aristóteles, resumiu tudo na máxima de que uns nascem para mandar e outros para obedecer. Era com base nessa filosofia que a Companhia de Jesus justificava a prática. Para os negros, a situação piorou quando, no século XVI, difundiu-se a tese de que os africanos eram descendentes de Cam, o filho amaldiçoado de Noé, e que estavam condenados ao cativeiro. A escravidão, portanto, era o caminho para suas almas serem perdoados.
Educado conforme os preceitos dessa época, padre Antônio Vieira acabou incorporando esse pensamento em sua fala e textos literários. Em 1633, o religioso recebeu o bizarro convite para pregar um sermão para os negros. Sua missão era convencê-los, em uma espécie de catequese, da importância de eles serem escravizados e de como essa condição os ajudaria na salvação de suas almas. Vieira, que estudara os textos da Companhia de Jesus de ponta a ponta, escreveu os sermões para os africanos baseados na ideia da suposta ascendência maldita. Disse-lhes que, para se livrarem do pecado de serem da estirpe de Cam e alcançarem a redenção, deveriam aceitar a cruz cristã, trabalhar na senzala e não se rebelar. Vainfas explica que pouco se sabe sobre as circunstâncias do episódio, embora afirme que a prática foi apoiada pelo Estado e pela Igreja e, provavelmente, dirigida a africanos que já entendiam o português.
Consciente ou não, Vieira passava adiante não apenas um texto religioso e literário, mas um discurso político favorável à manutenção das estruturas sociais da época. Ao fazer isso, o jesuíta demonstrava conivência com a exploração dos negros. E parecia se esquecer de condenava justamente aqueles que saíram do mesmo continente de onde, talvez, tenham vindo seus antepassados; de que o sangue que corria nas veias daqueles negros talvez fosse o mesmo que corria nas suas; de que, no topo de sua árvore genealógica, também poderia estar Cam, o filho amaldiçoado de Noé.
VERRUMO, Marcel. História Bizarra da Literatura Brasileira. São Paulo: Planeta, 2017. pp. 51 a 53.
Nenhum comentário :
Postar um comentário